Christina Meliunas, 54, e Jaqueline Rocha, 28. Quase 20 anos as separam, mas quando o assunto é experiência de vida, as duas têm uma coisa em comum: encontraram no esporte uma saída para traumas e momentos difíceis.
A atividade física tem benefícios comprovados cientificamente para a saúde mental, como a liberação de serotonina, endorfina, dopamina e adrenalina, hormônios ligados à felicidade e ao bem-estar. Além disso, ela também ajuda no autoconhecimento, eleva a autoestima e faz com que a pessoa supere seus limites.
“O exercício serve como um modulador da neuroplasticidade, atenuando áreas do cérebro que estão ligadas à depressão. Ele também tem esse efeito comportamental, de sair da rotina, do ciclo vicioso, começar a ter novos relacionamentos e desafios”, diz João Antonio da Silva Júnior, especialista em medicina do esporte pela USP (Universidade de São Paulo) e médico do Hospital São Domingos, no Maranhão.
“Com a bicicleta, eu me reencontrei”
Christina encontrou os benefícios do exercício após o término de um casamento que durou décadas e lhe rendeu três filhos. Ela decidiu pedalar, por indicação de um amigo próximo, e se apaixonou.
“Cinquenta anos é muito tempo de vida. Você esquece de si durante esse período, porque tem família e trabalho. Com a bicicleta, eu me reencontrei, lembrei da Christina lá de trás, agora tenho tempo para pensar na minha vida”, diz.
Já são quatro anos em cima da bike. O início não foi fácil: quedas, ralados e muitas frustrações que quase a fizeram desistir, até encontrar a LuluFive, uma assessoria de ciclismo feita especialmente para mulheres. E foi lá que tudo mudou.
Christina encontrou no grupo de mulheres ciclistas o apoio que precisava
Imagem: Arquivo pessoal
“Eu sempre ouvi que ‘mulher não é amiga de mulher, mulher só é amiga de homem’, mas na Lulu eu descobri que mulheres empoderam outras mulheres, mulheres apoiam outras mulheres e têm histórias em comum para incentivar umas às outras.”
Neste grupo, ela aprendeu sobre determinação e resiliência. “Enquanto as meninas davam três voltas, eu estava na minha primeira. Entender esse processo foi muito difícil, porque eu pensava: ‘já tenho 50 anos, deveria estar pedalando bem’. Mas entendi que a vida não é assim, nós sempre precisamos aprender algo.”
A escolha de um esporte individual e não coletivo também foi um desafio. Até então, Christina, que é veterinária, tinha praticado hipismo ao lado de seus filhos, arriscado-se no surfe, mas nunca em uma coisa completamente nova e, principalmente, sozinha. “É o momento que fico mais perto de Deus. Eu vejo o dia nascer, a cidade acordar, é um momento de muita gratidão.”
Esportes individuais podem trazer benefícios, como o autoconhecimento e a superação de limites, mas é preciso analisar o perfil de cada um. “Existem pessoas que podem ter uma fobia social, um gatilho quando existem outros indivíduos envolvidos”, explica Silva Júnior.
“Quem prefere voar solo geralmente está buscando uma competição com elas mesmas, um contato com o seu ‘eu interior’. Ela está ali, na adrenalina, buscando seu limite”, diz Monica Machado, psicóloga pela USP (Universidade de São Paulo), fundadora da Clínica Ame.C e pós-graduada em psicanálise e saúde mental pelo Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Albert Einstein.
Após uma separação difícil, Christina se encontrou na bike
Imagem: Arquivo pessoal
Para Christina, esse tempo a sós era exatamente o necessário para resgatar uma identidade que foi perdida ao longo dos anos. “Hoje eu sei quem eu sou, sei do que gosto, qual roupa gosto de usar, que música eu gosto de ouvir, o que quero ou não quero fazer.”
Isso mudou o relacionamento que eu tinha com os meus filhos. A primeira coisa que eu quis ensinar a eles é que a vida muda, você pode estar numa estrada e precisar ir para outra. Mostrei que sempre dá tempo de recomeçar e aprender algo novo. Acho que hoje eles me enxergam com força, como uma pessoa decidida, que acorda de madrugada para pedalar e está feliz por isso.
Essas mudanças também se encaixam em outras áreas da vida de Christina, que recentemente se formou em direito aeronáutico, com especialização em cargas vivas. Ela também quer fazer um mestrado em Cannabis medicinal para animais. “Nunca é tarde para se reinventar.”
“Eu posso dizer que o esporte salvou a minha saúde mental”
A independência que o esporte traz também chamou a atenção da coordenadora de marketing Jaqueline Rocha, que após ser sequestrada e mantida por horas no porta-malas de seu próprio carro, perdeu a coragem de dirigir e até de andar sozinha na rua.
“Eu não conseguia ir à academia fora do meu prédio, aí um dia tomei coragem para correr na rua, e quando consegui fazer isso, fui criando confiança para sair mais, ver as coisas, estar lá fora sozinha, que era algo muito difícil para mim”, lembra.
Sua relação com a corrida começou quando ainda era jovem, porque seu pai corria, mas só se transformou em uma paixão depois desse evento traumático, que fez com que enxergasse o esporte como uma salvação. “Gosto de correr na rua, sozinha, sem fone, sem nada. É um momento de terapia comigo mesma, assim consigo pensar no que quero fazer e como lidar com as coisas.”
Quando você alcança uma meta, é uma conquista tão sua e você fica tão orgulhoso disso. Não posso dizer que a corrida ajudou ou melhorou a minha saúde mental, porque na verdade ela salvou.
Em setembro deste ano, Jaqueline teve a experiência de completar a Maratona de Berlim, na Alemanha, uma das mais consagradas da modalidade. Foram 3h55min em 42 km de prova. “Eu me dei conta de que, apesar de individual, a corrida é o esporte mais coletivo que existe. Lá em Berlim as pessoas saíam da casa delas para incentivar os corredores, e isso fazia total diferença. É um senso de coletivo maior do que a gente imagina.”
A corrida ajudou Jaqueline a superar um trauma
Imagem: Arquivo pessoal
Um dos momentos mais emocionantes desde que começou a correr também envolveu outras pessoas. A voz dela embarga e os olhos se enchem de lágrimas só de falar sobre. “A minha primeira meia maratona foi em 2018. Meu pai, minha mãe e minha madrasta foram me prestigiar. Cruzar a linha de chegada e ver os três me esperando com um olhar de orgulho foi uma das coisas mais lindas da minha vida.”
Esse sentimento de realização é algo que Jaqueline gostaria de compartilhar com outras pessoas. “Comece, só dê um primeiro passo. Se você deu um passo, você já é um corredor. Não se force a nada, vá naturalmente e entenda o seu corpo, não queira competir com ninguém, só consigo mesmo. Seu corpo vai fluir, e eu prometo: você vai melhorar, mas dê tempo ao tempo.”
Como começar um esporte novo
As histórias acima têm pontos em comum. Um deles é o fato de que as duas iniciaram em esportes novos, mas com calma e paciência, tentando, errando e conhecendo seus próprios limites. Essa é a principal dica dos especialistas para evitar lesões e frustrações que podem resultar no abandono da prática.
“O fator mais importante é a progressão gradual. A pessoa entra em uma atividade física com a ansiedade de recuperar o ‘tempo perdido’ e obter resultados rapidamente, isso é muito perigoso. Por isso, quem tiver condições, também é interessante procurar uma orientação médica, um profissional da saúde para avaliar lesões, problemas de coluna, entre outras questões”, explica João Antonio da Silva Júnior.
Na hora de encontrar uma atividade de preferência, é importante também não ter pressa. Buscar algo que seja prazeroso e que o motive —afinal, isso não pode se tornar um estresse, já que é justamente um “escape” dos problemas do dia a dia. A partir disso, o indicado é manter uma regularidade.
“É preciso haver uma mudança comportamental, uma transição que inclua a atividade na rotina, para que não existam dificuldades. De maneira geral, indicamos 30 minutos por dia, buscando alcançar ao menos cinco vezes por semana”, diz o especialista.